::: Todos nós celebramos algum enterro :::
A assunção do choque prenuncia uma poética que dá um passo além na direção do estilhaçamento estético. Para nós, porém, o decisivo, e o que talvez nos interessa aqui seja o sinal da precariedade e do risco em que se encontra tal experiência; o fracasso em recuperar a lembrança da aura benjaminiana; o erro como procedimento. Este fracasso, porém, só se torna visível por que é emoldurado pela lembrança da percepção aurática no lugar em que não podemos tomar o sentido de ‘nenhuma’ percepção aurática ao pé e na letra. Pois, por um lado, o choque só é pensável emoldurado pela experiência aurática, por outro, a aura só nasce como tema do pensamento a partir da experiência do choque. Ou seja, a aura não é simplesmente uma etapa deixada para trás, dentro de uma linha temporal infinita e homogênea calcada na repetição, e a estética do choque não se reduz a uma simples etapa nova encontrada a seguir no percurso reto desta mesma linha. Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger e Deleuze, sobremaneira, mostraram-nos que a repetição neste percurso não é o retorno do idêntico, do mesmo enquanto tal que retorna. A força da repetição, a novidade que traz, é precisamente o retorno em possibilidade daquilo que foi. A repetição restitui a possibilidade daquilo que foi, torna-o de novo possível. E é aí que reside a proximidade entre a repetição e a memória, uma vez que a memória não pode também ela devolver-nos tal qual aquilo que foi. É o sentido desta experiência teológica que Benjamin enxergava na memória, quando dizia que a recordação faz do inacabado um acabado, e do acabado um inacabado.
Nossa aposta neste trabalho com fotografias, projeções visuais, performance e ruídos sonoros será uma forma de arriscar projetar a potência e a possibilidade em direção ao que é por definição impossível, em direção ao passado, em direção a um ruído do que já foi. Esta é a origem, para nós, da retomada do luto benjaminiano, onde “nós todos celebramos algum enterro”, signo do entrelaçamento entre a morte e o brilho erotizado que pode assumir um antigo novo possível, isto é, no choque em constante tensão com o tédio. Onde o tédio que poderia, eventualmente, nascer desta repetição do que retorna, não se condensa no trivial eterno retorno do mesmo, mas na transcrição lenta e gradual na composição de imagens escatológicas, onde se prenuncia um fim, que no limite, tem a aparência de um murmúrio, de um ruído, de um gesto.
Ação de Tata Coutinho e Giusepe Botelho